9 de jul. de 2011

O Clube dos Corações Surdos

Entre os diversos jeitos de se classificar uma banda, um dos mais peculiares é o da vergonha. É o que diferencia grupos que tem e que não tem vergonha de fazer canções com apelo pop - como se, em algum momento perdido da história da música pop, alguém tivesse decretado que fazer bonitos e fáceis refrões fosse um pecado capital. A Harmada, nova empreitada de Manoel Magalhães, um dos melhores letristas da geração anos 00, pertence claramente ao time das desavergonhadas. Música Vulgar para Corações Surdos, trabalho de estreia da banda - que além de Manoel nos vocais e guitarras, conta com Brynner Mota na guitarra solo, Juliana Goulart na bateria e Filipi Cavalcanti no baixo - está repleto de belas músicas sobre amor, situadas em algum lugar entre a distorção do rock dos anos 90 e o charme de bandas como Travis e Coldplay.

Entretanto, não se trata de um disco de amor simples: como o próprio nome diz, são histórias para, mas também a respeito de corações surdos. Os personagens das crônicas da Harmada são pessoas que querem se enganar, se deixam enganar ou querem enganar os outros, como se a felicidade a dois fosse algo intangível. Mais: tratam-se de letras que a todo momento fazem menções à música, ao cinema ("o filme terminou nessa sessão/ninguém espera mais qualquer atriz"), à TV ("e vai passando na TV qualquer bobagem), à clichês amorosos ("nessa luz tão clichê/eu te encontro perdida) em uma metalinguagem que soa excessiva à primeira vista, mas não é deslocada, muito menos gratuita.

É como se o amor romântico e bonito com que os personagens sonham fosse apenas possível dentro da arte, e não na realidade - tomando como realidade os espaços em que tais personagens vivem, e não a realidade do ouvinte, em um claro exemplo de simulacro. Deu pra entender? (Se você viu Inception, e conseguiu entender aqueles níveis diferentes de sonho que o filme propõe, então você conseguirá entender, caro leitor). Pensando dessa maneira, é possível considerar a Harmada uma banda consciente das armas que tem na mão - algo na linha do que diria Rob Fleming, ao questionar porque "ninguém se preocupa com crianças ouvindo milhares de canções sobre corações partidos, rejeição, dor, miséria e perda".

Não basta, porém, apenas ter todo um arsenal à disposição e saber o que cada pequeno gatilho pode fazer - é também preciso usá-lo de maneira adequada. E a Harmada – nome inspirado em um livro do escritor gaúcho João Gilberto Noll - faz isso de maneira exemplar, ao misturar em proporções interessantes barulho e melodia para criar frases que ficam na cabeça por muito tempo. É o que acontece com a strokeana "Carlos e Cecília", com a vigorosa "Bairro Peixoto" - que lembra os momentos mais esporrentos do Weezer - ou com a bonita balada "Faça por Mim", filha bastarda de Billy Corgan, só para citar três exemplos. É também o charme do clima jazzy que se estabelece ao final de "Luz Fria", na qual, sobre uma cama criada por um sax, Manoel canta: "O que me faz chegar aqui eu já nem sei/Onde me leva esse amor/Pra torturar meu coração". Ou ainda, a sensação asfixiante que "Sufoco", a faixa de abertura do disco, atinge por volta da metade de sua duração, ao falar de um casal em crise: "Por hora já não sonho mais por nós/Nem tento disfarçar qualquer razão/Se hoje o que eu preciso te mostrar/É mais do que eu consigo te dizer/Perdão".

Uma comparação com a Polar, a banda anterior de Manoel, se faz necessária. A temática presente nas canções das duas bandas é, de certa maneira, a mesma – “Bairro Peixoto”, por exemplo, soa como uma continuação de “Gabriela”, do já extinto conjunto. Porém, a mensagem se torna diferente por culpa dos arranjos que acompanham tais temas. A Polar era herdeira do new acoustic movement, que no começo da década trouxe à tona bandas como Travis, Keane e Coldplay, investindo muitas vezes em bem tramadas relações entre piano, guitarras e violinos - mas que se tornavam impraticáveis ao vivo, como declarou Manoel em recente entrevista ao Scream & Yell. Já a Harmada se aproveita dos elementos de canção que a Polar usava – como a condução com um instrumento à frente em um ritmo que cresce, até trazer a bateria à tona explodindo no refrão – mas também coloca outros – como a distorção nas guitarras, ou baterias marciais e cavalares – transformando o que poderia ser um vulgar "dèja vu do rock inglês" em baladas e rocks que merecem atenção.

As aspas do parágrafo acima não são em vão: trata-se de um dos versos de "Avenida Dropsie", a melhor dentre as catorze faixas de Música Vulgar para Corações Surdos. “Avenida Dropsie” é o nome de uma história do quadrinista Will Eisner, e também de uma peça da Sutil Companhia de Teatro. Ao início, há a instigante narração do ator Guilherme Weber – da Sutil - interpretando justamente as frases iniciais do texto de Eisner. Ao iniciar a melodia, os versos se sucedem feito slides ou frames mostrando cenas urbanas: "a cor negra no cinema/A distância na TV/A Estação Consolação às três(...)a noite inteira relembra os motivos/As cores no mesmo lugar/Os bares fechando/As ruas vazias". Apoiados num arranjo que se estabelece num crescendo, tais versos desembocam em uma ponte que mostra a passagem do tempo: "horas inteiras perdidas em claro/Anos inteiros passados em casa". Juntos, tudo parece culminar para o apse em um refrão explosivo, em um sofá solitário ("esqueça esse barulho e vá dormir/Sozinha/Com os olhos na televisão"). Após pouco mais de cinco minutos de corações destroçados, Weber retorna para declamar: "No centésimo ano da Avenida Dropsie, oito prédios foram incendiados e destruídos. A Avenida Dropsie foi praticamente toda demolida. Apenas um prédio permaneceu em pé".

Ao final de "Avenida Dropsie", o que fica é uma síntese não só dessas catorze canções, mas também da vida de muitas pessoas que ainda sonham talvez, com amores de comédia romântica de 90 minutos, com direito a happy ending e letrinhas subindo no final - e se assemelham, portanto, às personagens de Música Vulgar para Corações Surdos. Existe, porém, uma diferença: o coração surdo dessas pessoas não está imune à força e à poesia deste belo álbum composto, cantado e tocado pela Harmada.

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