3 de out. de 2013

Cavalo Sem Rumo

São Paulo, 28 de setembro de 2013. No palco da Choperia do SESC Pompeia, um homem ruivo e barbudo mostra suas canções em luz parcial, quase penumbra, deixando na escuridão as 800 pessoas que esgotaram a lotação do lugar e gritam animadas ao final de cada música, mas ouvem com silêncio as palavras e os acordes. Algumas dessas pessoas esboçam gritos de "lindo!" e "gostoso!", ao que o músico responde que "fica mais bonito no escuro". Mas afinal, quem é este homem e do que ele se esconde?

Algumas coisas se esclarecem ao se dizer que o homem é Rodrigo Amarante, uma das duas cabeças pensantes da banda brasileira mais influente da última década, os Los Hermanos. A apresentação no SESC Pompeia é apenas a terceira após o lançamento, na semana anterior, de seu primeiro disco solo, Cavalo, seis anos após a separação da banda.

É bastante tempo, mas na cabeça dos fãs (e da crítica, por que não?) parece muito mais. Apesar de ter participado da superbanda Orquestra Imperial e do Little Joy, projeto paralelo com Fabrizio Moretti (o baterista brasileiro dos Strokes) e Binki Shapiro, muito pouco se ouviu de Amarante nos últimos anos, enquanto Marcelo Camelo, seu antigo companheiro, gravou dois discos, dois DVDs ao vivo e produziu um sem-número de artistas da cena da nova música brasileira, como Wado, Cícero e sua esposa Mallu Magalhães. Além disso, a expectativa em torno de Rodrigo se torna ainda maior quando se lembra de que o ruivo foi o responsável por algumas das melhores músicas da última fase da banda, "O Vento" e "Condicional", ambas marcadas por refrões fortes e pop, no meio de um disco que até hoje soa bastante derivativo, Quatro.



Ao se ouvir Cavalo e ver o show de seu lançamento, entretanto, é possível talvez entender algumas coisas sobre tamanho silêncio de Rodrigo Amarante. Pelo menos metade das canções do disco, executado na íntegra na apresentação, remete a fuga, exílio e saudade. Não é à toa: nos últimos anos, o músico passou boa parte de seu tempo fora do Brasil, seja excursionando com o Little Joy, morando na comunidade hippie de Devendra Banhart ou tentando fazer acontecer em Los Angeles.

É também um diálogo com a tradição lírica brasileira, mesmo que em outra língua, como é o caso de "Mom Nom", uma explicação do que se é sentir distante de casa. Se Gonçalves Dias, naquele que é um dos poemas mais bonitos em língua portuguesa, falava de palmeiras e sabiás, Amarante dialoga em francês com um ouvinte imaginário sobre berinjelas roxas. Já os versos finais de "Fall Asleep" ("The tales I knew are true somewhere") evocam a incerteza provocada pela distância, como se as verdades pertencessem ao mundo antigo e não ao lugar presente do narrador.

Ambas, assim como o resto do disco - à exceção de “Maná”, um balanço de macumba que soa como se Vinicius de Moraes morasse na Califórnia - exibem um instrumental delicado, na linha do que nos últimos meses virou moda na canção brasileira, com arranjos mínimos que, a princípio, tendem a valorizar a canção, mas podem se transformar em grande cilada, uma vez que letra, melodia e harmonia acabam por parecer similares e indiferentes ao longo de todo um álbum.



Voltando ao exílio, é difícil não falar de "Irene", uma referência óbvia à canção homônima de Caetano Veloso em seu disco de 1969, quando já se encontrava preso pela ditadura militar, pouco antes de ir forçado para a Inglaterra. O riso da Irene (biograficamente, uma das irmãs do compositor, embora interpretações sejam livres para ignorar tal fato) de Caetano era o motivo do eu-lirico da canção querer fugir, de maneira quase positiva, de suas saudades de casa. A "Irene" de Amarante, entretanto, ocupa outro lugar, o do rosto que nunca dá trégua, como uma memória de um lugar que não volta. Há ainda "Tardei", faixa que encerra o disco admitindo uma demora, mas cujo ápice é uma pergunta: onde está meu lugar?

O que todas essas declarações mostram em pequenos pedaços, Amarante faz questão de deixar explícito no único momento animado de sua apresentação, quando, ao celebrar a cidade de São Paulo, toca "Augusta, Angélica e Consolação", de Tom Zé. Mais do que uma homenagem, entretanto, ao escolher tal canção o hermano mostra o quanto perdido está, como se o personagem que vai morar na Estação da Luz porque seu coração está escuro (assim como o palco do SESC Pompeia, diga-se) fosse ele próprio.


Ao final do show, Amarante agradece ao público pela quarta ou quinta vez a chance que lhe foi dada. É um manifesto de humildade, de certo, mas também é um sinal da baixa auto-estima e do quanto perdido pode estar o músico. Apesar do respeito ao ouvinte, Rodrigo Amarante não precisa pedir chance para ninguém. Goste ou não goste dos Los Hermanos, este é o homem por trás de canções vigorosas como “Sentimental”, “O Vento” e “Último Romance”, ainda que estas tenham se desgastado com alguma superexposição. Ele tem o público nas mãos, mesmo em um show marcado por insegurança e alguma repetição tétrica.

É admirável que Amarante não ceda ao repertório de sua antiga banda, mesmo com pedidos insistentes do público (que naquela noite pedia, talvez em tom de ironia, o maior hit do LH, “Anna Julia”). Entretanto, quando, após tanto tempo de silêncio, ele escolhe tratar de um tema que já foi usado por gigantes de maneira entre o simples e o simplório, parece muito pouco. Ainda mais quando o disco parece, ainda que de maneira difusa, remeter a uma recusa ao sucesso e à relevância de outrora dos Los Hermanos. Por outro lado, pode parecer urgência demais por parte da crítica esperar que este Cavalo já seja uma obra-prima, o disco que redefine a música brasileira de nossos dias, e pixá-lo por não cumprir tal objetivo.

É talvez uma saída fácil, mas espera-se que seja uma questão de tempo. Depois de finalmente lançar seu disco, talvez algumas pressões se aliviem e o músico volte a se encontrar, reencontrar seu público e sua melhor forma. E, como ele próprio já avisou no final do show, ao recuperar a canção que encerra o disco do Little Joy, “Evaporar”, “tempo a gente tem, custe o que custar”. Se vai ser um século, um mês, três vidas ou mais, ninguém sabe. Mas é uma questão de tempo. 

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Leia mais: 
- Análise de Marcelo Costa para o UOL sobre o show de estreia de Cavalo
- A grande chance de Rodrigo Amarante, texto de 2012 escrito por Tiago Agostini para o S&Y
- Toque dela, o segundo disco de Marcelo Camelo
- Além do que se pode ver: Marcelo Camelo ao vivo no SESC Ipiranga

Foto de Marcelo Justo, vídeos de Alexandre Matias.

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