Exilado em Londres em 1972, Caetano Veloso fez um disco ímpar na sua discografia e na música brasileira: Transa. Marcado pelo tema da saudade e do estranhamento em terras distantes, o cantor faz diversas pontes entre o lá e o cá, entre o clássico e o popular, entre as duas línguas em que se dividia sua vida naquele momento. Além disso, trata-se de uma obra onde as pesquisas musicais do tropicalismo atingiram talvez seu melhor resultado.
No disco anterior, Caetano Veloso, do ano anterior, alguns desses temas já apareciam, especialmente na pungente versão de "Asa Branca" e na clássica "London London" (depois regravada com sucesso, entretanto destacada de seu contexto original, pelo RPM em seu multiplatinado "Rádio Pirata ao Vivo"). Entretanto, o que era apenas implícito no disco antecedente, aqui fica totalmente à mostra.
O disco se abre com "You Don't Know Me" (o link abre para a canção no Youtube), bem acabada mistura de bossa nova e rock'n roll, em cuja letra o baiano mostra-se indecifrável e sozinho e também se revela fruto da miscigenação brasileira (na citação de Carlos Lyra: "Nasci lá na Bahia de mucama com feitor"). Em seqüência, "Nine Out Of Ten", que escancara a sensação de estar vivo ("Feel the sound of music banging in my belly") apesar da tristeza e da nostalgia que o abate na terra da Rainha ("Nine out of ten movie stars make me cry, but I'm alive").
Evocando ao mesmo tempo Gregório de Matos (a fim de criticar os mandos e desmandos vigentes na pátria tupiniquim: "Triste Bahia/a mim vem me trocando e tem trocado/tanto negócio e tanto negociante") e canções de roda, "Triste Bahia" é uma longa litania onde se destacam o ritmo forte da percussão e a final mensagem de paz ("Trago no peito a estrela do norte/Bandeira banca enfiada em pau forte").
"It's a Long Way" cita Beatles, Caymmi e Vinicius de Moraes para mais uma vez reiterar a idéia da saudade e de que ainda havia um longo caminho a percorrer para chegar à liberdade. "Mora na Filosofia", samba de morro de Monsueto e Arnaldo Passos, é outro exemplo do aperfeiçoamento do Tropicalismo: recupera uma canção tida como brega, assim como em Tropicália ou Panis et Circences, quando regravou "Coração Materno" do ébrio Vicente Celestino. "Nostalgia (That's What Rock'n Roll Is All About)", um rock alegre, pra cima, de certa forma metalingüístico, encerra o álbum cantando sobre o que faz o rock - e a música em geral - ser o que é.
De volta à pátria, Caetano adentrou canaviais complexos em Araçá Azul (de 73), brincou com a simplicidade em Jóia/Qualquer Coisa (ambos de 75), soltou a franga no final dos anos 70 com o disco Bicho, começou uma carreira de intérprete nos anos 90 (em algumas horas acertada, em Fina Estampa, outras tantas muito frustrante, como em A Foreign Sound) e de tempos em tempos, irrompe com declarações bombásticas e momentos cômicos ("Ême-tê-vê, bota essa p**** pra funcionar!").
As impressões digitais de Transa estão bem presentes no cenário de hoje: é possível senti-las tanto em Chico Science & Nação Zumbi quanto no Skank, passando pelos cariocas da Orquestra Imperial e pelo samba-rock-afoxé do alagoano Wado. Em busca de renovação, o próprio Caetano revisita o conteúdo do álbum, como fez recentemente em seu Zii e Zie, um disco de "transambas", segundo o cantor. Enfim, ouso dizer: este é o melhor disco de Caetano - o que você está esperando para transá-lo?
Caetano Veloso completa 70 anos nesse 7 de agosto, dia de São Caetano (é feriado aqui na terrinha). Pra comemorar a data, republico aqui uma das minhas primeiras resenhas, publicada no Pop to the People. Hoje, esse texto até me irrita um pouco (porque ele mais mapeia a audição do que faz uma grande análise) mas gosto de olhar para ele para ver como eu acho que evoluí escrevendo nos últimos tempos. Ou isso tudo é só uma bobagem sentimental. De quebra, um top10 pessoal de Caetano, que deve lançar mais um disco com a Banda Cê em breve.
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