Caro leitor, caro amigo, pense rápido aqui comigo: quantas vezes você já foi a um show e saiu com cara de bunda porque o artista não tinha tocado a sua música favorita? Indo em frente: quantas vezes você já xingou um jornalista porque ele criticou o artista que não sabe escolher um repertório? Se você for tão melômano quanto eu, provavelmente a contagem deve estar perdida lá pela casa das dezenas, talvez centenas. Mas nossos problemas acabaram: tudo graças a Elvis Costello e o seu maravilhoso Spectacular Spinning Songbook.
A regra da brincadeira é simples: no palco, junto com o homem por trás de This Year Model, sua banda (os Imposters, formados pelo tecladista Steve Nieve, pelo baterista Pete Thomas e pelo baixista Davey Faragher) e dançarinas, há uma enorme roleta. Cada casa da roleta tem o nome de uma música ou de um tema comum nas canções de Costello, e durante boa parte do show, o inglês convida alguém da plateia para girar a brincadeira. Assim que sai o resultado, o cantor dispara a tocar a música contemplada pelo sorteio, como se fosse uma incrível máquina sonora. Criada em 1986, a proposta voltou a ser usada por Elvis em seus espetáculos em 2011, ganhou CD e DVD e, na noite do último dia 6 de junho, teve lugar mais uma vez em Londres, no Royal Albert Hall.
Ok. Você deve estar desconfiado: mas como assim ele vai deixar o repertório todo de um show na mão da sorte? Não, ele não vai. Mesmo já tendo provado mil vezes que não é bobo, Costello reitera tal argumento ao (tentar) garantir a noite já nas primeiras músicas. Duvida? O que dizer de uma sequência de cinco músicas que começa com “I Can’t Stand Up for Falling Down”, tem “High Fidelity” e “Mystery Dance” no meio e se encerra com “Radio Radio”?
Pois bem... é após essa última que o cantor transforma o Royal Albert Hall em um game show dos mais divertidos: trajando uma cartola, jogando com um holofote para chamar a atenção da plateia e recebendo os convidados no palco com galhardia, Costello leva o público para uma atmosfera divertida. Na primeira rodada, “45”. Na segunda, um jackpot: “Girl”, que faz o inglês tocar um trio de canções com tal palavra no nome, começando com a porrada “This Year Girl”.
Rodadas e canções se seguem, trazendo surpresas que o cantor só apresenta de vez em quando (“I Want You”), convidados especiais (em uma das aparições, Bonnie Raitt sobe ao palco, e vê Elvis cantar um bônus de Johnny Cash com “Cry Cry Cry”, veja o vídeo) e intervenções marcantes do público.
Um exemplo é o Martelo das Canções: outra atração da noite, na qual o espectador não gira a roleta, mas sim testa sua força em um martelo. Se atinge o nível mais alto, ele pode escolher o que quiser ouvir – até mesmo “Macarena”. Um senhor gordo é chamado ao palco, e sem pestanejar, acerta em cheio. O Royal Albert Hall – ou pelo menos sua parcela feminina – berra por “She”, regravação de Charles Asznavour que Costello fez para “Um Lugar Chamado Notting Hill”. O senhor gordo não perde tempo: “I wanna hear Oliver’s Army”, para muxoxo quase geral (não para este que vos escreve).
(Em tempo: minutos depois, com o pedido de uma japonesa que veio de Tóquio só para o show, Costello tocaria “She”, e veria 30% do público ir embora após a canção).
No bis, a emoção ainda é mais forte: primeiro, pela emoção de “Indoor Fireworks”. Depois, pelo tour de force de Costello em “Jimmie Standing in the Rain”: ao final da música, Costello desliga o microfone, e, amparado pela acústica do Royal Albert, e na base do gogó, faz sua voz ecoar (com grande clareza e emoção) pelo recinto, cantando “Brother, can you spare a dime?”.
Na sequência, mais uma porrada: uma versão longa, com grandes solos de guitarra, de “Watching the Detectives”, faixa que encerra a estreia de Costello, “My Aim Is True”. Pra encerrar, uma versão soul de “Everyday I Write the Book”, outro grande solo em “(I Don’t Wanna Go To) Chelsea” e a machadada final da noite: “Pump It Up” e “(What’s So Funny ‘Bout) Peace, Love and Understanding”. Nessa última, uma brincadeira de Stevie Nieve encerra a noite: no meio da música, ele deixa o palco, e vai para o órgão do Royal Albert fechar a noite com chave de ouro. Ou quase.
É que esse crítico de meia pataca também tem lá sua música favorita de Costello, e pela sorte, ela não apareceu no show. (A quem pergunta, a moça responde pelo nome de “Alison”). Mas é justamente aí que está a graça do Spectacular Spinning Sonbook: não dá pra culpar o cantor por tal escolha – afinal, a música estava lá na roleta, e não apareceu. É uma ideia genial, primeiro, porque transforma uma turnê de revisita a antigos sucessos em algo emocionante. Segundo, porque exibe um artista brincando de perder o controle sobre seu repertório – e, na verdade, mostrando todo o seu domínio sobre ele. Terceiro, e mais importante: porque é um espetáculo em sua forma mais pura. Sendo assim, não dá pra sair desse show sem um sorriso verdadeiro no rosto. Yeah, my smile is true, mr. Costello.
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Não pude ir esse ano mas segui um trecho da turnê ano passado, quando fui a duas noites no RAH. The Spectacular Spinning Songbook é o show mais viciante ever!
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