Em algum momento da minha infância, lembro-me de um final de
tarde que meu pai foi me buscar na escola, e, no lugar de uma rádio qualquer
que nós sempre escutávamos juntos, havia um cara de voz esganiçada cantando
sobre um homem velho. Meu pai berrava a letra junto com a canção, não se
importando com o trânsito de São Caetano do Sul às seis e alguma coisa da
tarde. Anos depois, eu fui saber que o tal cara se chamava Neil Young, que o
homem velho era o "Old Man" e o disco no rádio era o Harvest,que dali em diante se tornou meu companheiro de muitas paixões perdidas edescobertas durante a adolescência.
Desde a sexta ou sétima série, o maior canadense-americano
vivo me acompanha, como um mentor enigmático munido de palavras sábias,
apaixonadas e solos de guitarras empolgantes. Ao mesmo tempo em que minha
paixão pela obra do The Loner crescia, minha certeza de que não o veria em solo
pátrio aumentava -de maneira que, assim como os estudos e a ida à terra do meu avô, assistir a um show dele se tornou um dos principais objetivos dessa
viagem, cumprido bem no meio do mochilão de junho, no último dia 15, na RDS
Arena, em Dublin. Mais do que o meio da viagem, entretanto, na altura aquela
apresentação parecia resumir a vida ao meio - antes e depois de Neil Young.
O dia, entretanto, começou com dois shows de abertura
bastante especiais: primeiro, os velhinhos endiabrados dos Los Lobos
esquentando a tarde ensolarada, mas fria e ameaçando chuva da capital
irlandesa, com bons solos, muita animação e, claro, a releitura de "La
Bamba", cantada sobre a base harmônica de... "Like a Rolling
Stone" - vale a pena caçar o vídeo por aí no YouTube da vida. Diversão garantida.
Meia hora depois, os heróis locais do Waterboys botaram os
quarentões bêbados do local para berrar alto seus hits, com grande participação
do violinista Steve Wickham - uma pena, entretanto, que a favorita da casa "The
Whole of the Moon" tenha sido uma das canções menos animadas do repertório
dos garotos da água. Água essa, por sinal, que caiu torrencialmente após a
passagem do grupo de Mike Scott pela RDS Arena, transformando a espera na parte mais
difícil - e me presenteando com a volta da gripe que parecia ter sido curada emUtrecht.
Se água era a palavra de ordem no local, mais um pouco dela
saiu dos meus olhos assim que Neil Young e a Crazy Horse entraram no palco,
criando uma parede sonora à primeira vista bastante agressiva, mas recheada de
amor com... "Love and Only Love" e "Powderfinger". A essas
duas, seguiram-se dois grandes números do disco mais recente da banda, a
faixa-título "Psychdelic Pill" e a arrasa-quarteirão "Walk Like
a Giant", com seus quase vinte minutos de grandes solos de guitarra,
assobios, falsos finais que culminavam em explosões de som e muita, mas muita
farra dos senhores de idade em cima do palco.
Era bonito ver que, mesmo depois de um aneurisma cerebral e
quinhentos mil anos de estrada, Young e seus companheiros continuam a se
divertir na ribalta como jovens que acabaram de ganhar seu primeiro
instrumento. Outro exemplo empolgante dessa jovialidade é "Fuckin'
Up", na qual plateia e músicos brincam de xingar-se uns aos outros,
amparados por mais guitarras distorcidas, é claro.
O coração bateu mais forte e o rosto ficou todo molhado de
lágrimas quando Neil Young ficou sozinho no palco, apenas com seu violão e sua
gaita, para dois números acústicos: a baladaça "Comes a Time" e uma
releitura pessoal de "Blowin' in the Wind".
Pessoalmente, tudo o que
eu queria é que o tio Neil continuasse ali no palco por mais meia hora, mandando
clássicos e mais clássicos pra me deixar sem chão, mas após soprar o vento ele
trouxe a Crazy Horse de volta para mais uma hora de muito barulho, com um
repertório que provaria para qualquer um porque o canadense merece o apelido de
pai do grunge. Além da já citada "Fuckin' Up", rolaram "Ramada
Inn", "Cinnamon Girl", "Mr. Soul" e aquela que é,
talvez, quem sabe, a maior canção de Young: "Hey Hey My My (Into the
Black)".
Os últimos bis dos shows de Young continham "Like a
Hurricane" ou "Everybody Knows This is Nowhere" ou ainda
"The Needle and the Damage Done", mas quem deu as caras em Dublin foi
"Cortez the Killer", com mais um arrasador solo de guitarra, fazendo
jus ao original da "verdade-revelada" que é Zuma.
Mesmo
assim, alguma coisa não aconteceu por completo no meu coração - até posso
colocar a culpa na gripe, no cansaço e na saudade de casa, meus maiores
companheiros de viagem, mas não posso deixar de dizer que saí da RDS Arena com
a sensação que ficou faltando alguma coisa.
Há, na nossa sociedade contemporânea, uma grande valorização
dos ritos de passagem: quantas vezes, caro leitor, você já parou pra discutir,
idealizar ou comemorar o seu primeiro beijo, a sua primeira namorada, a sua
primeira transa, emprego ou show de rock? Entretanto, com um pouquinho de maturidade
(não muita, afinal, este escritor chegou há pouco na segunda dezena da vida), a
gente acaba descobrindo que nem sempre o que vem primeiro é o melhor, que
ansiedade demais pode atrapalhar tudo na hora H, e que às vezes, as coisas
certas não acontecem na hora certa - elas, assim como os melhores vinhos e a
Coca-Cola na geladeira, precisam de um bocado de tempo para conhecer seu grande
momento.
Este texto é prova disso: à saída do show (mais atrapalhada
e confusa que fim de jogo em qualquer estádio de futebol brasileiro), tudo o
que eu dizia era um muxoxo, mesmo sabendo que tinha visto um show pra fã nenhum
botar defeito. Agora, guardo na lembrança outra imagem daquelas pouco mais de
duas horas, como se fosse algo que eu não tivesse aproveitado por inteiro, ou
sabido captar a energia do instante, mas que ainda assim, permanece de maneira
doce na memória.
Há pouco mais de dois meses, escrevi um texto falando sobrecomo fazer um show inesquecível é uma arte complicada, por precisar de uma
comunhão entre artista, plateia e condições específicas de tempo-espaço. Hoje,
on the way home, pareço saber que nem sempre tudo precisa ser correto para se
tornar, de alguma maneira, perfeito.
PS: Peço perdão pela péssima qualidade das fotos deste post.
Não levei a câmera para o show – havia uma série de restrições em relação à
captação de vídeos e imagens na RDS Arena, e fiquei com medo de ter de deixar a
máquina por lá. Baita arrependimento – especialmente quando entrei no recinto e
vi inúmeras câmeras DSLR. Fica pra próxima.
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