Em 2004, o cineasta Morgan Spurlock ficou famoso com Super Size Me, filme no qual provava os danos que uma dieta alimentar de lanches do McDonald’s causa no corpo humano. Entre as regras às quais se sujeitou para a produção, ele deveria sempre aceitar as promoções da rede de fast-food para aumentar o tamanho de suas refeições (o “super size”), ingerindo litros de refrigerante e muitas batatas fritas por apenas alguns centavos a mais. "Se tudo é tão delicioso, por que não comer mais disso tudo, já que a diferença é tão pouca?”, pensa o consumidor médio. A resposta é simples: é graças a esse pensamento que hoje boa parte dos norte-americanos encontra-se em níveis de obesidade elevados.
Django Livre, o novo filme do diretor Quentin Tarantino sobre um ex-escravo que procura comprar a alforria de sua mulher na América do final do século XIX, sofre exatamente do mesmo problema. Ao longo de sua carreira, iniciada em 1992 com Cães de Aluguel, Tarantino conquistou fãs no mundo todo graças a alguns traços muito peculiares em seus roteiros e longas-metragem.
Entre eles, a capacidade de tecer diálogos nonsense marcantes, e criar personagens que se adequem a esses diálogos como uma luva, criando um universo próprio onde eles fazem sentido; a recuperação de atores cujas carreiras andam em ponto morto ou no ostracismo; a utilização de muitas referências cinematográficas (por vezes obscuras) por centímetro quadrado de rolo de filme; o uso de trilhas sonoras pop para a criação de grandes cenas (Pulp Fiction, seu segundo filme, por exemplo, conta com pelo menos três sequências inesquecíveis); e, por fim, mas não menos importante, a utilização da violência explícita como uma forma de distração, além, é claro, de muito humor. Sobre essa última, vale citar uma recente declaração do diretor à "Rolling Stone" brasileira sobre Cidade de Deus: "Se eu tivesse feito esse filme, ele teria muito mais risadas". A soma de todas essas características resulta em filmes deliciosos, feitos com a primordial intenção de divertir o seu espectador, que deve pensar: "se filmes de duas horas desse cara são maravilhosos, filmes de três horas seriam estupendos". Não.
Após Cães de Aluguel, Quentin Tarantino sempre fez filmes extensos, ultrapassando com facilidade as duas horas de duração. A exceção a esses casos fica por conta de Kill Bill e À Prova de Morte, mas ambos fazem parte de projetos maiores – o primeiro, por exemplo, deveria ter sido apenas um filme, mas teve de ser dividido em duas partes para que pudesse chegar às telonas de maneira comercialmente aproveitável, resultando em um trabalho opaco. Durante a produção de Django Livre, foi sugerido que o mesmo processo fosse feito com o novo longa-metragem, mas o diretor bateu o pé para que sua história fosse contada em apenas uma sessão de cinema – nem que ela resultasse em seu filme mais longo, com a bagatela de 165 minutos.
É necessário avisar ao leitor, antes de qualquer coisa, que boa parte desses 165 minutos é composto de grande cinema, especialmente pelos diálogos afiados criados por Tarantino e por atuações inspiradíssimas de quarteto Christoph Waltz (o caçador de recompensas travestido de dentista Dr. King Schultz), Leonardo DiCaprio (o escravista Calvin Candie), e, em um nível abaixo, Samuel L. Jackson (como o mordomo de Candie) e Jamie Foxx (o protagonista Django). Mais uma vez, o diretor é capaz de criar momentos hilariantes (como a cena de abertura, quando acontece a união entre Schultz e Django) e totalmente explosivos (fique atento para as trocas de tiros verbais e literais que ocorrem entre o filme, e tente segurar o primeiro instinto de vibrar com o que se vê na tela na sequência final). Entretanto, um filme não se basta apenas de grandes cenas: é preciso costurar a história, e é nesses momentos que Django Livre se perde.
Há passagens que se arrastam indefinidamente durante o filme (por exemplo, o treinamento do protagonista para se tornar um caçador de recompensas) e outras que poderiam ser suprimidas (os dez minutos que antecedem a última grande sequência e contam com a participação de Tarantino como o negociante de uma mineradora). Além disso, parece que falta ao diretor a capacidade de terminar uma cena no tempo certo, insistindo em prolongar uma piada já engraçada o suficiente, ou explicando por vias literais o que está acontecendo na tela. Outro ponto que pesa contra Django Livre nesse sentido é o fato dele perder muito de sua força quando se livra de seus dois melhores atores em cena - repare na cena em que a mão de Di Caprio sangra e este continua a esbravejar como se não houvesse amanhã para entender.
É admirável a decisão de Tarantino de insistir em filmar o roteiro de Django Livre em apenas um longa-metragem, especialmente nos dias de hoje. Optar por dividir a história em dois filmes seria, certa maneira, entregar-se aos interesses mercadológicos da Hollywood de hoje em dia, que aposta cada vez mais em milhões de dólares em franquias e continuações, além de deixar claro que pouco se aprendeu com a experiência de Kill Bill.
Por outro lado, entregar uma obra cujo fim essencial é a diversão é pedir demais de um público cinema pipoca: há necessidades fisiológicas e cerebrais que impedem o espectador de imergir por completo no que está sendo exibido na tela, ainda mais quando momentos explosivos alternam-se com passagens incapazes de gerar uma só faísca.
Poucos realizadores podem se gabar de possuir uma liberdade para expressar suas ideias em filme como Tarantino nos dias que correm, mas parece que falta ao auteur de Pulp Fiction e Bastardos Inglórios algo que o impeça justamente de sê-lo, uma figura capaz de conter seus excessos e deixar suas histórias enxutas – não é à toa que vinte anos depois, Cães de Aluguel permanece sendo o melhor trabalho do norte-americano. Ou, posto em outras palavras, falta a Quentin Tarantino assistir a Super Size Me e entender que, em boa parte das vezes, oferecer menos gordura em um royale with cheese pode tornar suas intenções ainda mais saborosas.
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