17 de mai. de 2013

Eles São Assim e Assim Por Diante

Frequentar o mesmo bar durante muitas e muitas noites da sua vida pode ser uma experiência educativa. Além de aprender a lidar bem com a bebida e se tornar um expert em comida de boteco, você passa a reconhecer vários "personagens de bar". Um dos mais típicos é aquele cara entre os 35 e os 45 que teve um longo casamento e, da noite para o dia, tomou um pé na bunda. 

Repare bem: no começo da noite, ele está lá sozinho, tentando achar alguém que preencha bem os espaços vazios de seu coração. Para isso, ele usa uma meia dúzia de cantadas que deveriam ser legais - na época dele. Quando o álcool começa a bater no sangue, ele passa a se lembrar das coisas que fazia com a ex e chora. Mais algumas doses, e aí você vê uma das duas seguintes coisas acontecendo: ou o nosso personagem começa a falar coisas sem sentido algum, incomodando até o barman, ou ele recupera o orgulho, lava o rosto no banheiro e, com alguma bondade, consegue até levar uma garota legal para casa – para retornar ao bar no dia seguinte, é claro. 

Se pessoas pudessem ser discos, o personagem acima seria um exemplar quase idêntico a Eles São Assim e Assim Por Diante, o novo disco da banda gaúcha Bidê ou Balde. Surgido no final dos anos 1990 em Porto Alegre, o grupo de Carlinhos Carneiro (voz), Vivi Peçaibes (teclado), Rodrigo Pilla (guitarra) e Leandro Sá (guitarra) chega agora a seu quatro álbum - o primeiro desde 2004, quando gravaram o mediano É Preciso Dar Vazão aos Sentimentos

Lançado no último mês de dezembro, Eles São Assim e Assim Por Diante retoma ideias que fizeram a fama da banda chegar àquele espaço desconfortável entre o grande demais para o indie e o pequeno demais para o mainstream: narrativas apaixonadas, riffs cativantes, coros extremamente simples, letras banhadas em nonsense, tudo isso em um equilíbrio muito bem azeitado entre o clichê e a sinceridade. Entretanto, como é natural para a espécie humana após um espaço longo de tempo, alguns desses elementos permanecem intocados em sua qualidade, enquanto outros parecem ter perdido sua força.

As letras (aparentemente) sem sentido escritas por Carlinhos Carneiro pertencem ao segundo time. Se antes elas eram colagens que funcionavam como belo deboche do cenário pop (“Me Envergonha”, “A-ha”), hoje elas soam como anedotas adolescentes (“Tudo Funcionando Direito”, “Coisinhas Nojentas de Amor”) contadas por senhores de meia idade, que minutos atrás estavam chorando a saudade de suas antigas companheiras (“Ontem Percebi Que Te Amo Ainda”, “Mesma Cidade”). Outra piada nonsense que pouca gente entendeu foi a voz da garota alemã que permeia o disco, ora falando em português castiço, ora falando na língua de Goethe – apesar de dar uma mínima unidade ao disco, o recurso pouco contribui para compreendê-lo. 

Outrora um elemento central nas músicas do grupo, tornando-as ainda mais deliciosamente perversas (“Matelassê”, “É Preciso Dar Vazão aos Sentimentos”) ou tocantes (“Aeroporto”), as guitarras foram deixadas de lado em “Eles São Assim e Assim Por Diante”. Em seu lugar, aparecem as teclas dos sintetizadores pilotados por Vivi Peçaibes (e da sanfona tocada por Renato Borghetti em “João da Silva” e na regravação do hit “Mesmo Que Mude”, incluída no disco como bônus track), que acabam por enfraquecer as canções da Bidê ou Balde, transformando o que soava eficiente como clichê/sincero em apenas cafona. 

Há, entretanto, um momento em Eles São Assim e Assim Por Diante que esse equilíbrio aparece de maneira melhor resolvida. Trata-se de “Mesma Cidade”, uma canção cujos versos parecem ter sido feitos sob medida não só para o personagem do primeiro parágrafo cantar para a ex-mulher que o deixou, mas também para a própria Bidê ou Balde: “Vai ser melhor se você deixar eu tentar outra vez(...)/Deixa eu andar nas ruas que você escondeu de mim/deixa eu reconquistar você”, avisa Carlinhos Carneiro. Entretanto, há algo em “Mesma Cidade” que a faz perder força, e é o fato de que ela clama a atenção do ouvinte de maneira explícita, no lugar de conquistá-lo apenas por seus próprios méritos. 

Antes que as esperanças estejam totalmente perdidas, é bom avisar: existem três músicas que merecem sim toda a atenção do ouvinte nesse álbum, três hits matadores, que não deixam em nada a dever para o repertório de Outubro ou Nada. Retirada de Adeus, Segunda-Feira Triste, “Me Deixa Desafinar” aparece aqui em versão idêntica à anterior, como uma ode àqueles que não conseguem alcançar as notas certas – e querem respeito por isso. “+Q1 Amigo” por sua vez, é um hino à amizade colorida, enquanto o galanteio para “Lucinha”, com direito a metais saborosos e festeiros, conquista seu espaço na galeria de grandes garotas retratadas pelos gaúchos, ao lado de “Dulci”, “Melissa” e “(Eu Te Amo) Lucinda”. 

Mas, a bem da verdade, o maior mérito de Eles São Assim e Assim Por Diante é o de sua própria existência. Ele é a prova viva da sobrevivência – aos trancos e barrancos – de uma banda da geração gaudéria que prometeu tomar de assalto as capitais do país com seu sotaque cantado e seus riffs grudentos. A Bidê ou Balde, por exemplo, bateu duas vezes na trave do mainstream brasileiro: em 2001, eles venceram a boyband KLB na categoria Revelação do VMB com o clipe de “Melissa”, fazendo muita gente aprender a dirigir só para levar uma garota para a praia e acreditar que o rock ainda tinha salvação na Terra de Vera Cruz. Meses depois, o grupo soltou seu primeiro disco, Se Sexo é o que Importa, Só o Rock é Sobre Amor, pela Abril Music, mas pouco conseguiu em uma gravadora que encerraria suas atividades por grandes gastos com marketing, jabá e o combate à pirataria.



Quatro anos depois, a Bidê, junto da Cachorro Grande, da Ultramen e do cantor Wander Wildner (ex-Replicantes), fez parte de uma tentativa da MTV de catapultar para o sucesso quatro bandas gaudérias que não tinham lá muito a ver entre si. Apesar de ser um trabalho tosco (no conceito, não na produção), o Acústico MTV Bandas Gaúchas serviu para apresentar o grupo de Carlinhos Carneiro a muita gente, além de sacramentar o poder de "Mesmo que Mude" como uma das grandes baladas do novo milênio. Podia ter sido o suficiente para fazer a segunda chance do grupo de Carlinhos Carneiro vingar, mas logo depois a banda entrou em hiato criativo – encerrado apenas em 2010 com o EP Adeus, Segunda-Feira Triste.   

Os companheiros de geração da Bidê ou Balde não tiveram melhor final: a Video Hits de Diego Medina gravou um grande álbum (Registro Sonoro Oficial), mas logo depois encerrou suas atividades; o mesmo pode se dizer da Wonkavision, que contava com as boas letras de Will Prestes. A Acústicos e Valvulados segue viva até os dias de hoje, mas nunca conseguiu romper a fronteira entre o Rio Grande e o resto do país, e pouco produziu, em termos de qualidade, para se estabelecer no mercado nacional. 

Em contrapartida, a Cachorro Grande conseguiu tornar-se conhecida nos quatro cantos do país após utilizar o Acústico Bandas Gaúchas como trampolim. Entretanto, após dois bons trabalhos (o setentista Pista Livre, de 2005, e Todos os Tempos, de 2007, que expandia as influências do grupo para sons como Stone Roses e folk-rock sem deixar as guitarras de lado), a banda de Beto Bruno e Marcelo Gross chafurdou na lama com Cinema, de 2009, e Baixo Augusta, de 2011. Hoje, a a banda é muito mais lembrada como representante do “rock tiozão”, abrindo shows para o Aerosmith e o Scorpions, ainda  que seus integrantes tenham pouco mais de 30 anos. 

Diante desse cenário, ver alguns dos melhores veteranos dessa turma de volta à ativa e com fôlego para gravar um disco inteiro e capacidade para cunhar pelo menos três grandes canções (“Me Deixa Desafinar”, “Lucinha” e “+ Q1 Amigo”, além da boa “Mesma Cidade”) é um alento. Mais que isso: é um sinal de esperança para uma das bandas mais anárquicas que já apareceram no Brasil continuar seguindo em frente, quase como se você secretamente soubesse que um dia nunca mais irá ver o cara solitário do começo do texto no seu bar favorito – seja porque ele conseguiu uma nova paixão ou reconquistou seu velho amor, esquecendo o que passou. 



(publicado originalmente no Artilharia Cultural, em janeiro de 2013)

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