Escrevi esse texto para o Artilharia Cultural no começo do ano, mas resolvi republicá-lo por aqui agora, uma vez que acontece nesse próximo final de semana a estreia de No (ou como está sendo chamado aqui, Não) em Lisboa.
Em franca ascensão nos últimos 15 anos, o cinema sul-americano tem dedicado boa parte de sua melhor produção a analisar os fantasmas de seu passado recente, marcado por governos ditatoriais liderados por militares e elites locais, iniciados em repressão a movimentos de caráter socialista e/ou populista e sempre lembrados por sua censura à liberdade de expressão e aos direitos individuais. É o caso, por exemplo, de filmes como o chileno Machuca (Andrés Wood, 2004), os sensíveis argentinos O Segredo de Seus Olhos (Juan Pablo Campanella, 2011) e Kamkatcha (Marcelo Piñeyro, 2002) e os brasileiros O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburguer, 2006) e Ação Entre Amigos (Beto Brant, 1998). Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e vencedor do prêmio principal da semana dos realizadores no Festival de Cannes, o chileno No, dirigido por Pablo Larraín, se insere nessa seara de maneira instigante ao encerrar uma trilogia sobre o Chile das últimas décadas, retratando um episódio bastante particular da história do país andino: o plebiscito de 1988 que retirou Pinochet do poder, após 15 anos de um regime autoritário.
Estrelada por Gael García Bernal, a película tem como protagonista a figura de René Saavedra, publicitário que ajuda a criar a campanha do voto contra a permanência de Pinochet no comando do Chile (o tal "no" a que se refere o título da produção). Apesar de repetida, a maneira que o roteiro apresenta seu herói não deixa de ser instigante. No começo do filme, ele parece apenas um cara interessado em dinheiro e poder, capaz de dizer frases como ˜Este é um vídeo inserido em seu atual contexto social e econômico. Afinal, o Chile é um país que pensa no futuro" para apresentar uma banda numa propaganda de refrigerantes. Porém, à medida que os minutos passam, seu engajamento com a empreitada pobre de recursos mas cheia de ideias aumenta com grande intensidade (e explicada por uma relação com o passado mais sugerida que propriamente explicitada), até o ponto que sua vida e a dos seus é posta em risco. Para complicar ainda mais a situação do protagonista, seu chefe é o escolhido para liderar a propaganda governamental, forçando René a um dilema entre o capital e seus ideais.
Mais do que a história de René, entretanto, o grande trunfo de No (baseado na peça Il Plebiscito, de Antonio Skármeta) é exibir, sem utopia, revanchismo ou parcialidade, os truques e as artimanhas da publicidade política. Comandada por 19 partidos diferentes - dos sociais democratas aos comunistas ferrenhos - a campanha do "não" parece destinada a um colapso, uma vez que tenta reunir tantas convicções diferentes sobre um país. O "racha" fica ainda mais próximo quando René chega ao comitê de campanha e propõe que o grupo se una em prol de um conceito positivo como a alegria em vez de mostrar os perseguidos, desaparecidos, torturados e o povo miserável durante os 15 anos de desmandos de Pinochet, simplesmente porque é uma ideia mais vendável, "afinal, o Chile é um país que pensa no futuro". Sentindo-se afrontados pela proposta, alguns dos veteranos políticos ameaçam deixar a chapa, sob a justificativa de que aquele moleque insolente estava ignorando a História e os desmandos de Pinochet. Mesmo assim, o comitê segue em frente como pode, procurando preencher de maneiras criativas e inovadoras os 15 minutos a que teria direito para veicular suas ideias na televisão, durante um mês.
Apesar do final conhecido (pelo menos àqueles que não faltaram às aulas de história), Pablo Larraín é bem sucedido ao criar um clima de constante tensão na película, fazendo o espectador esquecer que sabe o que vai ver na tela. Três fatores o auxiliam nessa empreitada. O primeiro é o sempre competente Gael Garcia Bernal: em outra grande atuação, o astro de Diários de Motocicleta mostra sua força em momentos como a última grande sequência do filme, onde apenas seu olhar é capaz de fazer o espectador interpretar tudo o que viu anteriormente por outra perspectiva. O segundo é, de maneira esperta, intercalar passagens dramáticas com inserts dos vídeos das campanhas (do sim e do não) e das reações de dois comitês eleitorais, aproximando (ainda que com larga distância) No de uma estética documental.
Por fim, com iluminação e revelação feita à moda dos anos 1980, com direito à imagens fora de foco quando há muita ou pouquíssima luz (e gravadas em câmeras de baixa resolução), a fotografia de No faz o espectador mergulhar no clima da "década perdida" durante duas horas, sem se dar conta que mais de 25 anos se passaram desde então. Entretanto, assim como as estratégias de marketing de René Saavedra, é perspicaz salutar que este pode ser um expediente um tanto questionável, uma vez que suspende a temporalidade da narrativa e da realização do filme, podendo deixá-la tão artificial quanto um filtro do Instagram.
Apesar de manipular visualmente a quem o assiste, No promove uma interessante reflexão a seus espectadores (especialmente os brasileiros) assim que os créditos aparecem na tela. O que, de fato, vence um prélio? Os melhores candidatos ou as melhores campanhas? Aquele que opta pelo caminho do medo ou procura só imagens positivas? E, mais do que isso: qual é a história que se quer registrada? Quem são os heróis do país, e quem merece ser condenado ou esquecido? Considerando o atual momento político brasileiro, quando estrelas de mérito em um brasão policial são questionadas, uma Comissão da Verdade federal tenciona revisar os acontecimentos dos últimos 50 anos e ninguém menos que a presidente da nação é uma ex-guerrilheira, essas são perguntas indispensáveis, e que precisam de uma resposta urgente, inserida em seu atual contexto social e econômico. Afinal, o Brasil é um país que pensa no futuro.
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